Trata-se de uma importante questão. Afinal, o dia 31 de março de 1964 foi um golpe de Estado ou uma revolução? Foi golpe.
Muita gente se refere, hoje, a 64 como uma revolução. Voltemos um pouco no tempo: as gerações mais velhas, que, de alguma forma, presenciaram aquela época ou viveram sob os auspícios da ditadura, dizem “revolução”. Têm explicação para isso. Aqueles que tomaram o poder, isto é, os golpistas de plantão que ambicionavam o poder desde 1954, sobretudo os militares, adotaram a palavra “revolução” pois isso remete ao heroico, transformador e salvador. Queriam propagar essa percepção junto às massas. Os espectadores ansiosos ou desavisados também acharam que o 31/03 significaria a saída libertadora diante da ameaça reformista representada pelo presidente Jango. E há os alienados que beberam da propaganda massiva da época que evocava o heroísmo dos militares, tornando-os uma espécie de salvadores da pátria. Não há culpa, pois acreditavam nas promessas de um país do futuro e na eliminação dos agentes nocivos à segurança nacional. Esse discurso foi incrivelmente convincente. Até hoje tem gente que acredita nisso.
Mas foi golpe de Estado, sim. O presidente Jango fora deposto por comandantes militares das três armas e depois exilou-se, muitos políticos tiveram seus mandatos cassados arbitrariamente, os direitos políticos de cidadãos brasileiros foram suspensos e se instalou um clima de medo e ameaça. Somente durante o governo do mal. Castelo Branco (1964-1967) foram outorgados quatro Atos Institucionais: os A.I.s, conjunto de medidas políticas que conferem ao governante militar plenos poderes, com os quais suspenderam as eleições diretas para governadores de Estados e prefeitos das capitais. Com isso, eles passaram a ser nomeados, eram chamados de “biônicos”. Houve, ainda, a extinção dos partidos políticos, como o PTB, PSD, UDN e, consequentemente, a permissão, pelos militares, da existência de dois partidos, o chamado bipartidarismo: a Arena (Aliança Renovadora Nacional) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro). Alegaram que assim organizariam melhor a vida política do país, acabariam com a desordem partidária. A Constituição de 1967 foi outorgada e incorporava todo o caráter autoritário e centralizador dos Atos Institucionais vigentes até o momento. Bem, isso não é democracia.
Na economia, os militares, que entendiam muito bem da repressão política, não conheciam muita coisa acerca da gestão do país, da administração e do trato da coisa pública. Rapidamente, apareceram colaboradores que, prontamente, ocuparam cargos importantes na burocracia estatal, como, por exemplo, Roberto Campos, Delfim Neto, Eugênio Gudin, Otávio Gouveia de Bulhões, Mário Henrique Simonsen e tantos outros. Estes tecnocratas gestores elaboraram um modelo econômico que pregava o desenvolvimentismo.
Promover um acelerado crescimento da economia do país era a meta a ser alcançada a qualquer custo. Para tanto, permitiram a entrada de um alto volume de capital proveniente dos países ricos. Claro, gerou dependência e também estratosférica dívida externa. As multinacionais passaram a se interessar pelo Brasil vislumbrando ganhos e injetando investimentos e tecnologia. O custo foi elevado, pois os lucros exorbitantes obtidos eram remetidos para suas matrizes no estrangeiro, fuga de capital. As multis e as empresas nacionais também usufruíram do mercado consumidor interno expandido e dos baixos salários pagos aos trabalhadores. Essa matemática foi possível graças à liberação do crédito e à venda a prazo. Os brasileiros compravam eletrodomésticos, automóveis e outros bens de consumo como nunca, dando a impressão de que esse era o caminho para o país do futuro. Porém, o modelo econômico adotado era perverso e nefasto, ricos ficavam cada vez mais ricos, e pobres cada vez mais pobres. Não gerou distribuição de renda, e sim concentração. Abriu-se um gigantesco abismo entre ricos e pobres no país, herança notada até hoje. Vale lembrar aquela fala do então ministro da Fazenda, Delfim Neto, que disse: “Precisamos esperar o bolo crescer para depois dividi-lo”. Era o famoso Milagre Brasileiro. Todos sabem quem comeu o bolo: as elites. Para o povo, as migalhas. Parece brincadeira, mas foi verdade. Não se esqueça da euforia contagiante provocada pela conquista da Copa de 1970 e do adesivo escrito “Brasil, Ame-o ou Deixe-o”. Em 1973, o auge do crescimento sem distribuição de renda, o PIB, chegou ao recorde de 14%.
A ditadura ocupou-se de criar a imagem de um país perfeito e sublime, abençoado por Deus e bonito por natureza. Os meios de comunicação de massa – rádio, TV, revistas e jornais, por exemplo – sofriam a canetada da censura oficial, ou censuravam deliberadamente seu conteúdo a serviço do poder. Figuras como Chico, Caetano, Gil, Raul e tantos outros artistas foram censurados, suas obras, dilaceradas. Foram calados. O cinema, o teatro, a literatura, o jornalismo alternativo, as artes plásticas foram mutilados pelo Departamento de Censura do governo federal. Cadê a democracia? E olha que alguns driblavam a censura com criatividade genial. Chico Buarque usou o pseudônimo Julinho da Adelaide. Cildo Meireles carimbou as cédulas com os dizeres “Cadê Herzog?”.
No dia 13 de dezembro de 1968, a pior sexta-feira 13 da História do Brasil, o presidente mal. Costa e Silva baixou o AI 5, tudo ficou mais difícil, a ditadura escancarou-se. A. partir daí, o regime não tinha mais disfarces. A repressão policial, a censura e as medidas arbitrárias ficaram mais recrudescedoras. O medo invadiu o cotidiano de muita gente nas cidades grandes e nos lugarejos mais remotos do país. O argumento dos militares era que existia uma ameaça interna à segurança nacional, a “esquerda”. Todos acreditaram.
Se somássemos todos aqueles que optaram pela luta armada a fim de derrubar o regime caberiam num pequeno ginásio de esportes. A esquerda nunca representou uma ameaça de fato. Vários grupos armados surgiram, como, por exemplo, a ALN, a VPR, o PC do B e outros que protagonizaram atos extremos, como atentados, assaltos a bancos e sequestros. Contudo, os atos praticados pelos órgãos oficiais da repressão foram mais violentos. O DOI-Codi era sinônimo de repressão e tortura, só para exemplificar.
A vulnerabilidade da economia brasileira, associada ao esgotamento do modelo político ditatorial e somada aos graves problemas sociais, gerou um cansaço geral por parte do povo brasileiro. Chega de ditadura, a democracia parecia a melhor saída, embora alguns torturadores de plantão hesitassem em largar o osso. O projeto aberturista iniciado pelo gal. Geisel (1974-1979) e concluído pelo gal. Figueiredo (1979-1985) ocorreu de forma lenta, morosa demais. O povo nas ruas em 1984, desejando eleições diretas para presidente, foi decisivo para o fim da ditadura, era o movimento Diretas Já. Acabou sendo um movimento derrotado. As eleições presidenciais ocorreram de forma indireta, ou seja, um colégio eleitoral formado por deputados e senadores elegeu o mineiro Tancredo Neves. Tancredo não redemocratizou o país, morreu em 21 de abril de 1985. Seu vice, José Sarney, recebeu a presidência da República de bandeja. O país estava na mais profunda crise econômica, social e política, além do trauma de 21 anos de uma ditadura injustificável.
Uma piada da época ilustra o momento: os militares tomaram o poder alegando que o país estava à beira do precipício e depois cantaram “Este é o país que vai pra frente”. De fato, em meados dos anos 1980, estávamos no fundo do abismo.
O legado deixado pelo Regime Militar (1964-1985) foi terrível. Por isso, quando alguém manifesta saudades daquela época, digo que é nostalgia ignorante.
Vi pesquisa recente mostrando que cerca de 60% da população brasileira nasceu após 1964. Dedico este breve artigo para esses brasileiros. Conhecer a História permite compreender melhor o mundo em que vivemos. A democracia é infinitamente melhor do que qualquer ditadura.
Se o cenário do país inspira preocupação é porque a democracia que construímos nos tornou exigentes. E assim devemos ser, exigentes, para que possamos aperfeiçoar as instituições democráticas de nosso país. E sobre a questão inicial, segue a resposta: foi golpe.
* Carlos Augusto de Campos Valio é professor de história.