Uma história da Fabrica São Martinho

Vivi parte de minha infância ao lado da Fábrica Têxtil São Martinho. Também ao lado dessa indústria, havia (existe ainda até hoje) um campo de futebol, cujo time leva o nome de São Martinho. Um tempo saudoso, em que meus pais operários participaram, como muitos outros, da história de nossa cidade e da indústria de tecelagem de algodão.

Lembro-me de uma história que se passou nas dependências do casarão de propriedade da indústria e que ainda está firme e forte localizado na esquina da rua Nhonhô da Botica. Um guardião do tempo!

A família Meirelles, proprietária do solar, vinha durante as férias passar alguns dias nesse local. Seu Dario Meirelles, o chefe da família, tinha dentro do imóvel vários locais onde residiam os empregados de confiança, e tinha até um pequeno zoológico com vários animais silvestres.

Assim que um casal de funcionários se aposentava ou se demitia, outro era contratado. Numa dessas ocasiões, uma vaga foi preenchida por um casal que tinha uma filha; o pai ocuparia a função de mordomo, a mãe, como cozinheira e a filha iria estudar.

Naquele tempo, a iluminação pública era precária e, somada a isso, a crendice popular dizia que o casarão era assombrado – conversa que dura até hoje. Essa nova família recém-contratada não sabia dessa crendice, e, se soubesse, talvez fosse trabalhar em outro lugar.

O casal não era muito jovem, experiente e calejado pela vida dura e, quando soube da crendice, simplesmente a ignorou. Na verdade, o marido, acostumado com a dureza da vida, não mais acreditava no azar.

Dava chute em despacho, espalhando a farofa com a botina, pegava a galinha morta e jogava pra cima, tomava metade da garrafa de pinga numa talagada só, acendia o charuto soltando grossas baforadas de fumaça para o alto. Tudo isso sem o menor receio.

Assim era o pai, mas a moça, com apenas 17 anos, quando soube dessa história pelas novas amigas, ficou assustada, principalmente quando lhe disseram que todos que ali residiam tinham a nítida sensação de que sempre havia algo ou alguém espionando, vigiando.

Residindo no casarão já por dois meses, eles costumavam comprar leite de um leiteiro que levava o precioso líquido todos os dias até a porta da casa de cada freguês.  Um litro bem medido, até a boca do canecão, branquinho e livre do batismo com água do ribeirão Manduca.

O leiteiro tinha também uma filha, que o ajudava na entrega do produto lácteo, e logo ficou com certa amizade com a filha do mordomo. Vai daí que, certo dia, a menina do leite, sabendo que a menina do sobradão era medrosa, perguntou-lhe:

– Você já viu algum fantasma por aí?

Pronto! A menina do sobradão, trêmula, arrepiada, responde perguntando:

– Que fantasma?

E a outra finalizou:

– Dizem que, nessa casa, têm almas penadas de montão, uma em especial, celebridade pura, que, pontualmente à meia noite, vaga gemendo por toda a residência.

A mocinha – que nesse tempo estava em plena forma, bela, escultural, sensual e tudo mais, que um varão esperava para um casamento fogoso e feliz – entra pra dentro, vai direto aos pais e, chorando, confessa seu temor por almas de outro mundo. Os progenitores a acalmam, dizendo que essa história do além era boato e que até mudariam seu quarto dos fundos num outro, ao lado do deles.

O fato é que, dessa data em diante, todos os demais funcionários passaram a ouvir ruídos, passos e suspiros por todo lado. Até o incrédulo do velho andava ressabiado, desconfiando que ali havia algo sobrenatural.

Enquanto isso, a jovem, bela e vistosa já não mais reclamava das coisas estranhas e nem queria mais vir para o quarto de dentro; estava satisfeita com o quartinho dos fundos.

O velho, cabreiro, andava pensando pelos cantos em pedir demissão, mas, antes, iria dar uma minuciosa investigada nos fatos, isso sem dizer nada a ninguém. Anda aqui, anda ali, fuça num lado, olha em outro, e numa dessas o nosso Sherlock descobre, ao lado do quarto da donzela, um toco de cigarro. “Eu não fumo, a menina não fuma, assombração não fuma”, pensou ele, coçando a pestana.

Não precisou muito para concluir que havia uma mosca em sua sopa, e durante certa noite, ele se escondeu atrás de uma grossa cortina de juta que cobria um janelão ao lado do quartinho dos fundos da filha.

Exatamente depois do badalar da meia-noite, apareceu a assombração, que, sorrateiramente, entrou suspirando no quarto da mocinha… não antes de jogar uma bituca de cigarro no chão … Estava desvendado o mistério das almas penadas: era o esperto e lânguido guarda noturno da firma!…

Será?