O (des)acordo ortográfico

Não faz muito tempo, a “Folha de São Paulo” publicou, na primeira página: “Tempestade para São Paulo”. Seria aquilo um desejo dos editores, uma tormenta cair sobre a capital paulista? Eu adoro ler linhas, entrelinhas, frente e verso. O problema foi a falta do acento em pára, como era antes do Acordo Ortográfico, aprovado em 1990. Forçosamente, eu, se repórter, jornalista ou revisor, teria trocado para “Tempestade paralisa São Paulo”, e ficaríamos todos em casa, ponto final. Coincidentemente, semana passada, no dia 13 de março, a “Folha” se repetiu em título de capa: “Atoleiro para caminhões em rodovia…” É um problema que se torna diário, mal-entendidos são frequentes – antes, freqüentes, com trema, e tudo bem que ele dava mais trabalho ao digitar, mas essa simplificação veio mais para pasteurizar o idioma do que para outra coisa.

O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi votado pelo Senado em 1990, e até hoje, 27 anos depois, é uma caravela sem rumo, como a de Cabral, a vaguear na calmaria. Países de língua portuguesa assinaram o acordo: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, e, em 2004, o Timor Leste independente. Tudo bem, mas o único que usa mesmo (e obriga a cumprir) o Acordo é o Brasil, a nossa pátria mãe gentil, único seguidor quase totalmente fiel do tratado. A intenção dos signatários era unificar a ortografia dos países de língua portuguesa, mas e as diferenças?

Não sou escritor, como disse em artigo da semana passada, e menos ainda filólogo ou linguista. Mas arrisco um sobrevoo neste vespeiro, tabu para alguns, apenas para lamentar também que expressões como pé-de-moleque, pão-de-mel e outras perderam o hífen. Ficou parecendo que nos referimos ao pé de algum moleque ou a um pão feito de mel. Bem lembrou meu colega Antonio Ribeiro que os alemães vão juntando palavras para completar o sentido. Algumas delas longas, como Gesamtkunstwerk (Obra de Arte Total) de Richard Wagner, referindo-se à ópera como gênero musical completo. Algumas chegam a um certo exagero, como a longa e complicada “Donaudampfschifffarhtselektrizitätenhauptbetriebswerkbauunterbeamtengesellschaft”: Sociedade dos Empregados Subalternos de Construção de Usina da Companhia Principal de Eletricidade dos Navios a Vapor do Rio Danúbio. Não precisamos seguir a tradição germânica, mas por outro lado nosso simplismo e reducionismo ortográfico…

Meu pai, em antigo texto para um jornal, lembrou que a Constituição Federal poderia ter acrescentado “segundo as normas do falar e escrever brasileiros”. Problemas tinha aos montes com revisores, que, segundo ele, eram mais gramáticos e filólogos do que os melhores gramáticos e filólogos brasileiros. Consultam o “Aurélio” e, se não está lá, podam o texto. Dava um exemplo clássico: “errei todo o discurso dos meus anos”, que, não encontrando ressonância nos revisores, trocaram para “decurso”, deturpando o sentido. Trocaram “estufar o peito” porque acharam “estofar” no dicionário. Logo, parou de escrever tãopouco, como era aqui e em Portugal, porque a Academia Brasileira de Letras cismou de criar “tampouco”.

E foi adiante: correspondeu-se com o Fernando Henrique Cardoso, então senador por São Paulo, assim como o Darcy Ribeiro, senador pelo Rio, com quem tinha certo trânsito. Disse que o Houaiss defendeu o acordo porque, como diplomata e cumpridor da lei, o filólogo conhecia o direito internacional, e cita o Art. 49 da Constituição: “I – é de competência exclusiva do Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais…”

Meu pai e mais outros “quixotes” (o Houaiss usaria dom-quixotes, no caso) continuaram a brigar pela causa brasileira, ele próprio recebendo respostas de que as cartas dele seriam lidas nas discussões da regulamentação do Acordo Ortográfico. A partir daí, começou-se a descobrir sobre quem eram os maiores interessados, o que havia por trás do tratado. Em primeiro lugar, aos portugueses, que desejavam vender livros em sua própria “irretocável” e “platônica” língua, disse ele. Em segundo, de acordo com as “más línguas” de Portugal, teria havido um conluio entre o linguista lusitano João Malaca Casteleiro, da Universidade de Lisboa, no primeiro Encontro para a Unificação Ortográfica da Língua Portuguesa, em 1986, no Rio, e Houaiss, que participou como delegado do governo brasileiro. Trocando em miúdos, Portugal queria impor sua língua, e um dos próceres do governo português chegou a repetir que, por exemplo, se no passado no Brasil se usava “facto” e “projecto”, e mudou para “fato” e “projeto”, por que então Portugal teria de segui-lo na mudança, se a língua-mãe é deles?

Ao pé do ouvido, meu pai contou-me que a republicação e distribuição dos dicionários brasileiros para todos os governos, bibliotecas, consulados e representações do mundo, fora escolas e universidades do Brasil, foi em larguíssima escala. Sou franco, não posso ser exato, mas o assombroso número de exemplares de certo dicionário que me vem à mente teria sido de 3 milhões, segundo ele. Ao custo de hoje, a bagatela da R$ 400 o exemplar, e mesmo que fosse ao preço de R$ 200, dada a enorme quantidade, a coisa teria ido aos R$ 600 milhões – um naco disso para as famílias dos autores. Em outro texto, meu pai lembrou Ionesco, do Teatro do Absurdo: “cuidado, professor, a filologia leva ao crime”, referindo-se especificamente ao que se iria cometer, e nunca aos melhores filólogos, que tanto respeitava e admirava.