Nem pela porta dos fundos





Num momento em que, inacreditavelmente, até boa parte da intelectualidade mundial culpa – ainda que com as óbvias escusas – os cartunistas do jornal de humor “Charlie Hebdo” por terem sido assassinados, vem como animador alento a notícia de que o Ministério Público de SP rejeitou ação de indenização contra o programa humorístico brasileiro “Porta dos Fundos”.

Encabeçado pelo pastor e deputado federal Marco Feliciano, a denúncia pedia censura e pena de multa de R$ 1 milhão contra o grupo, a pretexto de que sátiras produzidas pelo canal estariam “ferindo a fé cristã”…

Lá, os extremistas matam os que ousam brincar com o profeta; aqui, o pastor busca dinheiro (!!!) dos que satirizam os cristãos. Em comum, o desprezo e o ataque à liberdade de expressão, embora separados com sangue, de um lado, e tentativa mordaça e dinheiro fácil, de outro.

Mas, há outro denominador comum: os de lá também brincavam com os cristãos, tal como os de cá não poupam as demais religiões. O humor, por essência, é pagão, irreverente, extremo ao sagrado, daí a aversão que inspira a quem vive de arregimentar e tocar rebanho.

Diferenças também existem, não obstante. Por exemplo: na França (e até na Argentina…), houve manifestações contra a barbárie e a favor da democracia – isto entendido não necessariamente como apoio ao esculacho religioso, mas ao direito de se esculachar, de brincar, de se expressar, ainda que com o “sagrado”.

Aqui, nada. Nenhuma mísera passeata protestou contra as mortes, muito menos em favor da democracia. Cada vez mais, aliás, o Brasil demonstra-se apto e ansioso por uma nova ditadura, agora sorrateiramente maquiada pela esquerda.

Nem mesmo os “black blocs” animaram-se a promover algumas ações de “desconstrução civil” em memória às vítimas, ou mesmo pela democracia que lhes permite praticar o vandalismo em nome da “justiça social”.

Nada. Fica a impressão de que “tanto faz”… Tanto faz se o governo conseguirá impor a censura velada no país, como novamente busca, por meio da proposta de “regulamentação da mídia”, tal acontece na própria Argentina e na Venezuela, aqui pertinho…

Tanto faz… Ou, até, melhor! Se houver um aumentozinho no Bolsa Família, aí, pelo visto, pode voltar a matar nos porões dos órgãos de segurança nacional que ninguém vai se incomodar.

Bastaria ao governo dizer que estaria apenas punindo não “subversivos”, mas “gente do mal”, contrária a toda essa coisa boa que o governo está proporcionando aos pobres do país…

Da mesma forma, muita gente quer fazer crer que os assassinos, na verdade, são “gente do bem”, desencaminhados pela injustiça social, os quais, diante da falta de expectativa de um futuro melhor e das terríveis ofensas de maldosos cartunistas, não tiveram outra saída senão fazerem-se ouvir pelos pipocos das metralhadoras…

Há quem pense diferente (salve rainha da democracia!). Estes apresentam alguns argumentos bastante coerentes. Um deles, expressado por Rogério Ortega, redator do caderno “Mundo”, do jornal “Folha de S. Paulo”, enfoca o que seria a tal “sátira piedosa”, uma espécie de piada politicamente correta, a qual, por uma autocensura, compromete-se a não ofender ninguém, salvo os “poderosos e opressores”.

Discordando da proposta, ele escreveu: “O humor deve ser livre, inclusive para errar. Mas, se o caso é domesticá-lo, urge um ‘manual da sátira piedosa’ com dicas de humor a favor, acompanhado de planilha para calcular a renda dos alvos (no Brasil, quem ganha acima de R$ 291, segundo dados do governo em 2012 já é classe média; pode, portanto, ser malhado sem dó). Afinal, sátira é coisa seríssima, que pode até matar – e não exatamente de rir”.

Por sua vez, o professor de ciências políticas, escritor e também da mesma “Folha” João Pereira Coutinho responde à pergunta mais significativa a ecoar após os assassinatos: o atentado teria acontecido caso os cartunistas não esculhambassem com a imagem de Maomé?

Argumenta ele: “Se não fossem os cartuns, seria outra coisa qualquer: aos olhos do fanatismo, os ‘infiéis’ não pisam o risco apenas quando usam o lápis”.

No entanto, em observação ainda mais pertinente, ele usa o nazismo como exemplo, lembrando que o secretário britânico das relações exteriores quando da ascensão de Hitler, Lord Halifax, convenceu o governo do país dele a tergiversar diante do ditador. Ou seja, a “arregar”.

Curiosamente, após visitar o füher, retornou à Inglaterra convicto a não apenas apaziguar o governo, mas… a sátira recorrente em dois jornais, que tinham o líder nazista como alvo, o “News Chronicle” e o “Manchester Guardian”.

A ideia era que não se devia irritar o homem do bigodinho com críticas e brincadeiras, acreditando-se que, assim, ele conteria sua aflição de “dominar o mundo”. Cômico? É para rir? Não, até porque trágica foi a história, que está aí para provar o equívoco…

E a irritação da cúpula do Terceiro Reich era, nesse particular, devida ao fato de que “os jornalistas britânicos não respeitavam a figura sagrada de Hitler, o ‘profeta’ da raça ariana” (alguma semelhança com a contemporaneidade?).

O aspecto mais importante, finalmente, foi destacado pelo escritor britânico Ian Mcewan, que enfatizou diferenças entre o Ocidente europeu e as regiões dominadas pelo islamismo, nas quais o conceito de liberdade é muito distinto do que conhecemos, senão inexistente.

A princípio, ele pondera que, se não houvesse respeito muito maior aos direitos individuais no Ocidente – inclusive, religiosos -, sequer o termo “liberdade de expressão” existiria. Assim, argumenta que o islã “vive sua versão própria de um momento totalitário”.

E sustentar isto não é “islamofobia”, senão a luz sobre um fato, cujas consequências vitimizam as populações muçulmanas em geral – que não são extremistas, tampouco assassinas -, mas servem aos interesses dos governos francamente despóticos.

Ele exemplifica: “Diariamente, lemos sobre casos de tortura, prisão e execução de muçulmanos que desejam deixar o islã ou discuti-lo.

No Paquistão, políticos usam as leis de blasfêmia como armas letais. Uma professora está presa no Egito há três anos por ter falado a seus alunos sobre outras religiões.

Na Arábia Saudita, que abriga os santuários mais reverenciados do islã, o abandono da fé é punida com a pena de morte”, segue o escritor, entre outros tantos exemplos.

Com essa realidade em vista, ele defende que, “nas cidades do Ocidente, com sua riqueza de raças e religiões, o único fiador da liberdade de religião e da tolerância é o Estado laico. Ele respeita todas as religiões e acredita em todas – ou em nenhuma.”

E, aqui, o ponto crucial do argumento: “A liberdade que permite aos jornalistas do semanário ‘Charlie Hebdo’ criarem sua sátira é exatamente a mesma liberdade que permite aos muçulmanos na França seguirem sua religião e expressarem seus pontos de vista abertamente.”

E, finalizando o artigo: “Os devotos não podem ter as duas coisas. A livre expressão é dura, é barulhenta e, às vezes, fere, mas, quando tantas visões de mundo precisam conviver lado a lado, a única alternativa à livre expressão é a intimidação, a violência e o conflito acirrado entre comunidades.

(…) sem liberdade de expressão, a democracia é uma farsa.

A liberdade de expressão – de dar e receber informações, de formular perguntas incômodas, de realizar pesquisas acadêmicas, de praticar a crítica, a fantasia, a sátira -, o intercâmbio de ideias em toda a gama de nossas capacidades intelectuais, é a liberdade que dá origem às outras.

A livre expressão não é inimiga da religião, é sua protetora. Graças à sua existência há mesquitas às dezenas em Paris, Londres e Nova York.

Em Riad, na Arábia Saudita, onde ela está ausente, não são permitidas igrejas. Hoje, quem importar uma Bíblia pode ser punido com a morte.”

Deus nos livre, portanto, do mau humor e do desapreço à liberdade de expressão, da “sátira piedosa” e do desprezo ao Estado laico, que não se desculpem assassinos e não se justifiquem os extremismos e intolerâncias, ainda que pela porta dos fundos da ainda tão frágil democracia brasileira.