Palavra difícil, e infinita. Do latim “fides”, de onde fidelidade, confidência, fidedigno, é confiança em uma verdade sem necessidade de prova, uma vez que convicção de natureza pessoal. A “fidelidade amorosa”, para o linguista Deonísio da Silva, “é insistentemente requerida entre os amantes”. Trata-se, portanto, de palavra dissociada de ciência, tanto que assim está dela distinta no binômio “fides et scientia”. (Mas correm paralelas: “Ciência sem religião é imperfeita, religião sem ciência é cega”, disse Albert Einstein).

Segundo o “Houaiss”, consiste em uma das três primeiras virtudes teológicas, “pela qual o homem aceita as verdades reveladas por Deus”. No uso laico, é “confiança absoluta em alguém ou algo”, e, para a filosofia, “crença religiosa sem fundamento em argumentos racionais, embora eventualmente alcançando verdades compatíveis com aquelas obtidas por meio da razão”. Na liturgia latina, o “credo” (de “credum in unum deum Patrem”, “creio em um Deus Pai”) é a terceira parte do Ordinário da missa, geralmente entoada entre o Evangelho e o Ofertório. “Adeste Fideles” (Vinde, Fieis), canção de Natal surrupiada pelo rei D. João IV, que a proclamou de sua autoria, chegou a ser Hino de Portugal, mas foi composta por John Wade no século 18: “Vinde, fieis, alegres e triunfantes / vinde, vinde para Belém / vejam o nascido Rei dos anjos / (…) Vinde, adoremos ao Senhor”. Esta canção só podia ser executada em locais autorizados, uma vez que o compositor era católico e a Inglaterra, Anglicana. Em Portugal, deu lugar a “A Portuguesa”, de Lopes de Mendonça e Alfredo Keil, oficializada como Hino Pátrio em 1911: “Heróis do mar, nobre povo / nação valente, imortal / (…) Entre as brumas da memória / Ó Pátria, sente-se a voz”.

Do ponto de vista legal, fé significa “credibilidade que deve ser dada ao documento no qual se funda”. O tabelião anota: “o referido é verdade e dou fé” (presunção de autenticidade), uma vez que a pessoa investida do cargo tem “fé pública”. Entre os judeus, fé é “emunah”, acima de dogmas, e tem um sentido profundo na longa tradição hebraica. É uma fé arraigada no sangue e nunca abandonada na tortuosa história de perseguições e peregrinações de seu povo desde a mais remota origem, pela própria natureza.

Na música popular, a fé está presente sob diversas formas, porém mais comumente no sentido religioso, como em Andar com Fé, de Gilberto Gil: “Andá com fé eu vou / que a fé não costuma faiá / que a fé tá na mulher / a fé tá na cobra coral / Oh, oh, num pedaço de pão”. Para Milton Nascimento e Beto Guedes, a fé é a bússola, que guia todos em seus caminhos: “Agora não pergunto mais pra onde vai a estrada / (…) vai ser, vai ter de ser, vai ser faca amolada/ o brilho cego de paixão e fé, faca amolada”. A paixão e a fé brilham como uma lâmina! A letra faz mais referências bíblicas: “Plantar o trigo e refazer o pão de cada dia / beber o vinho e renascer na luz de todo dia”, levando-nos com clareza ao pão e o vinho, símbolos do corpo e do sangue de Cristo, por Ele repartidos na última ceia (“tomai e comei”, “tomai e bebei”).

Na poesia, a fé aparece nos escritos pagãos, fora dos círculos religiosos, especialmente quando se fala de relações amorosas. Ora, existe declaração mais feliz do que o “Soneto de Fidelidade”, do Vinicius? “Que não seja imortal, posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure”. Ou, quase que prosa, também do “Poetinha”, como o chamava Jobim, em “Da Fidelidade”: “Há alguma coisa maior que nós mesmos, que é a fidelidade a nós mesmos. Flor espantosa que vive das águas cáusticas e das terras apodrecidas da prodigiosa extensão humana”.

Fidelis, de fiel, sincero, na Igreja Católica dá nome a um santo: Fidélis de Sigmaringa (Sigmaringen), adversário do calvinismo, da Ordem dos Capuchinhos e jurista, que é celebrado em 24 de abril. De Fidelis também veio Fidelio, que inspirou Beethoven na linda música homônima para a ópera com texto de Sonnleithner e Georg Treitsche, baseado em “Léonore ou l’Amour Conjugal”, sobre drama de Bouilly. Léonore, disfarçada de homem, conseguiu entrar em uma prisão de Tours, durante a Revolução Francesa, com o intento de libertar seu amado. Após o fracasso da estreia (1805), em Viena, Beethoven fez inúmeras modificações e trocou o título. Chegou a ter três versões: “Leonore I”, “II” e “III” – esta última considerada a mais bela, cuja abertura é com certeza a melhor de todas, e particularmente a mais prazerosa de se tocar. Renomeada “Fidelio”, a ópera finalmente obteve grande sucesso na estreia de 1814, anos depois da primeira versão. De Fidelio, também, vem Fidel, como o próprio Castro cubano, de família católica, que estudou em colégios Jesuítas de Havana, sempre expulso por mau comportamento.

Esta aparente contradição do longevo ditador cubano é muito bem espelhada em Frei Betto, que teve nada menos do que 2 milhões de exemplares de seu “Fidel e a Religião” vendidos em Cuba, país com menos de 12 milhões de habitantes – edição seguramente subsidiada pelo regime. Entre questões de fé, não há contradições: ela tanto pode surgir como dúvida na vida de padres, pastores ou outros, quanto, até, significar uma “recaída” entre ateus, caso de alguns que conheci, fato que geralmente acontece em idade mais avançada. E há muitos casos de conversão desses materialistas históricos. Talvez porque, não conseguindo explicar o sentido de toda uma vida trilhada, desistem de fazê-lo via “scientia”, terminam por acatar os desígnios impenetráveis da “fides”.