Espírito Santo abandonado

O chuvoso dia no litoral baiano, devidamente regado a generosos ventos frios foi propício para a redação desta coluna. Evito perder detalhes e esfriar das emoções de percurso. Era para fugir do clima paulista, mas, veio junto! Costumamos ser chamados de “pés-frios”…

No planejamento destas férias, propus irmos de carro. Afinal, era óbvio que a viagem de distância que se media em milhares de quilômetros teria aeroporto e aluguel de carro no destino. Explico para familiares que gostaria de fazer diferente. Conhecer lugares ao longo da viagem e aproveitar para fazer algumas pesquisas… Acadêmicos deveriam deixar suas atividades quando em férias, reconheço.

Ao longo dos Estados de São Paulo, Rio e Espírito Santo, rodovias sem buracos e faixas bem pintadas. Emolduram conhecidos e controversos pedágios. Esposa com planilha em punho, auxiliar em contagens e observações ao longo da rodovia. Confesso que já rendeu até litígio, quando solicitara tal apoio em viagem de núpcias.

Eu paro em posto de atendimento ao usuário, logo após o pedágio de Mimoso do Sul, Espírito Santo. Justificara para café e sanitário. Na realidade, queria um momento fora da pressão da rodovia. Tragédia de carros e caminhão, cujos ocupantes certamente teriam feito a última viagem, em face dos destroços. Permanecemos parados mais de duas horas para o devido socorro. A chuva fina, ruído constante e suave no para-brisa, contrastava com lufadas de ar de carros que insistiam ir pelo acostamento. Não se importavam quanto à possibilidade de dificultar o salvamento nem com o risco de participar como acidentados.

-Fique à vontade! Respondera a funcionária do posto de atendimento. Local limpo, tratamento adequado.

-Teve mortos no acidente? Perguntara, apesar do evidente resultado. A sensação humana da possibilidade, por mais remota que fosse, quanto a sobreviventes.

-Tentaram salvar. Mulher, criança e homem, morreram. Falou-me, levantando os olhos do computador, com imparcialidade forense. Desceu olhos à tela, enquanto abaixo os meus, para um gole de café. Não demonstrara emoção. Por quê? O treinamento profissional fomenta ponderação e visão profissional. Protocolos funcionam: como proceder, quais respostas dar. Contudo tragédias rodoviárias, dor de amigos e parentes, são comuns em nossa atualidade, não indignam. Nos jornais, se morrem poucos, tendem a ocupar espaços restantes em folhas internas.

A letalidade nas rodovias brasileiras se mede em média já superior a 40 mil mortos ano a ano. Não aceitemos justificativas de que está mais seguro, porque tem diminuído nos últimos anos. Afinal, a crise tirou veículos da rua. Carro parado não gera acidente! Acostumamo-nos com os mais de 23 mortos para cada cem mil habitantes, ano a ano. Solução? Chuva no molhado: educação, para entender do intangível risco, para conhecer física, o que é derrapagem, como ocorre, como veículos se desgovernam etc. E, principalmente, agir sob a razão do respeito à vida e não sob a emoção da velocidade.

Sigo viagem. Lembro que o risco é função do volume de tráfego, minimizado ao se oferecer novas vias, enquanto vislumbro trechos de rodovias novas em construção, entre morros laterais. Obras em descompasso com o crescimento de tráfego ou simplesmente paradas. Intermináveis faixas contínuas à minha frente, parecem hipócritas declarações. Sinto-me trouxa por ficar atrás de um caminhão enquanto todos ultrapassam. Cenário que faz o Espírito Santo representar o Brasil rodoviário. Abandonado.

No dia seguinte, vejo a candura de mãe e filha da tragédia, foto de rede social em artigo jornalístico. Policial cita que o visível pneu careca dos destroços deve ter influenciado. A cidade local, Mimoso, resguarda em seu nome, o absoluto contraponto da agressão à vida, o descompasso da trafegabilidade com a segurança.

Mestre em transportes e professor do Centro Universitário FEI (Fundação Educacional Inaciana).