Don Quixote e o inimigo invisível

Henrique Autran Dourado

“O espirituoso cavaleiro Don Quixote de la Mancha”, de onde “Don Quixote”, do espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), é uma obra que tem recebido, desde sempre, os melhores comentários pela sua grandeza. Levantamento de Chrisaphis Angelique publicado no The Guardian em 2012 exibe no título o panteão a que é alçada a obra: “É o melhor livro do mundo, dizem os maiores autores”. O personagem é tão importante no Ocidente que, ao par de outros países, em português é substantivo dicionarizado: “indivíduo ingênuo e generoso, que luta inutilmente contra as injustiças” (Houaiss). Um quixote, portanto, é aquele lutador incansável que enfrenta, sem esperar vencer, os mais terríveis inimigos.

No escritório de meu pai, em casa, entre as várias estantes de livros, havia uma reprodução de gravura do francês Gustave Doré (1832-1883) mostrando um Cervantes já meio descompassado, o corpo escorregando na poltrona entre vilões imaginários, livro na mão esquerda e espada erguida na direita. Lanças, brasões, seres estranhos fazendo-lhe um pórtico surreal com uma cabeça gigante ao chão, provavelmente decepada. Um dístico encimava toda aquela imagem alucinante e bem definia Cervantes: “Embebedou-se tanto na leitura que passava as noites em claro”. Talvez fosse o lugar para que meu pai ali se embriagasse não apenas com Cervantes, mas também Faulkner, Flaubert, Joyce, Goethe, Machado e Bandeira, no cantinho em que ele desbravava seu mundo à parte.

O fidalgo Alonso Quixano, de La Mancha – “terra dos moinhos” no centro da Espanha -, leitor de escritos sobre cavalarias, assume-se cavaleiro errante, Quixote de la Mancha. Para acompanhá-lo, busca um homem tosco do campo, Sancho Panza (do esp.: pança, opulenta barriga). Nomeia-o seu escudeiro, até mesmo pela paciência dele com as histórias malucas do fidalgo.  Quixote confunde-se cavaleiro com os personagens de seus livros. Alucinado, proclama-se Don e nomeia o velho cavalo Roncinante (“cavalo sem força”). “To tilt windmills” (“balançar moinhos”) tornou-se expressão popular em inglês, e representa lutar erraticamente contra inimigos invisíveis, imaginários ou reais – para Quixote, tanto fazia como quanto fez se era um ou outro. Há um sem-número de gravuras e desenhos do fidalgo montado em Roncinante, Sancho Panza a tiracolo, enfrentando moinhos como os de sua terra, armado com lança e protegido por um escudo, como se aqueles engenhos fossem seus adversários mortais. Um texto pleno de alegorias e sátiras, um marco que volta sua ironia para as tradições de escribas do passado.

Hoje, temos dezenas ou centenas de milhares de quixotes lutando não contra quimeras, mas entes invisíveis a olho nu, reais e devastadores – inimigo imperecível, arduamente domável, apenas, que atende pelo nome de Covid-19. É mais do que sabido que, se realmente controlarmos a ameaça, ela ficará latente, embora viva para sempre, como acontece com a influenza, a Aids, a peste bubônica, o ebola e a pólio, só para citar alguns exemplos. Uma vez domado, o vírus terá sua futura vacina acrescentada à velha lista, até que um próximo grande mal surja como novo tsunami.

Verdade que nesses novos tempos, especialmente a partir do século 20, a ciência tem evoluído em espiral ascendente, graças ao advento dos computadores – de lerdos monstrengos para cálculos e o enorme Univac até as supermáquinas de hoje, que performam milhões de cálculos por segundo. O “Human Genome Project”, de 1990, avançou muito mais rápido em suas decodificações do que os 20 anos que haviam sido previstos: terminou em 2003. A cada nova geração e upgrade, os equipamentos galgavam, eles próprios, saltos em progressão geométrica. Penetrar nos ácidos nucleicos que controlam todos os tipos de vida – como o RNA e o DNA – é algo que agora acontece em velocidade espetacular. Mas quem domina as técnicas são pessoas como nós, cada vez mais preparadas, pesquisadores científicos das nossas universidades, principalmente, vanguarda que alguns não estimulam e sequer reconhecem, seja por não enxergarem meio palmo à frente do nariz ou por interesses outros.

Forma junto aos incansáveis pesquisadores, em pequenos, mas altos passos (vacinas, fármacos, suportes como respiradores, testes, etc.), a legião de bravos médicos, enfermeiros e técnicos que, em turnos de trabalho nos limites do suportável, colocam suas próprias vidas em jogo para salvar pessoas. Eles precisam de todo o apoio das autoridades, nunca de seu descaso. Universidades públicas federais e, para ser claro, principalmente as estaduais paulistas – que têm suporte de instituições como a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) -, fazem de seus laboratórios os castelos de onde, qual novos fidalgos, se armam para empreender a guerra. As federais, com cortes de verbas no fomento de pesquisas, conquistam além do possível por puro amor à luta, dada a falta de condições mínimas.

Vêm à mente frases que são parte da nossa história: “Considero minha obra uma carta que escrevi à posteridade, sem esperar resposta”, disse Villa-Lobos, a representar agora a humildade e devoção com que todos esses profissionais, de pesquisadores e médicos até o pessoal de apoio,  encaram suas batalhas contra o vírus. Mais: pensando em embates, vem-me a Batalha do Riachuelo (1865), em plena guerra do Paraguai, quando o almirante Barroso conclamou: “O Brasil espera que cada um cumpra com o seu dever”. Deus salve todos esses quixotes, gloriosos quixotes.