Aos músicos e amantes da música – parte II

Ideias se desenvolvendo, fui tomado de uma outra intenção, um depoimento sobre a condição do músico: dificuldade de estudar, insegurança profissional, precária organização das instituições e o descaso geral, sem esquecer a visão preconceituosa. Chega a surpreender que até hoje ainda existam música popular de qualidade e orquestras sinfônicas no país, fora a enorme produção de mau gosto imposta goela abaixo pelas mecas televisivas.

Um pouco de brincadeira, curiosidade, reflexão e algo de autobiografia, se além de diversão introduzir elementos musicais e ajudar o leitor a ter um quadro mais claro sobre a profissão do músico, estarei satisfeito. Preocupei-me com a reação de pessoas ou seus familiares, mas o estigma do exótico está tão incorporado à trajetória do músico que em geral o artista se diverte com o folclore criado sobre si mesmo. Qual filho não riu das maluquices do pai músico? E as estranhezas de seu vizinho compositor? Que artista pode autoproclamar-se absolutamente sério? (Em inglês, francês e alemão tocar é “to play”, “jouer” e “spiel”, respectivamente, que também significam brincar).

Professor de música, era natural que eu começasse a esboçar certa preocupação didática. Se for possível distrair o leitor que possui algum conhecimento musical, por que não aproveitar para enriquecê-lo com algumas pitadas de expressões técnicas ou fatos relevantes?

Entre a história e a estória, concluí que a própria bibliografia já nos havia legado um ótimo repertório de curiosidades, até mesmo nos livros e compêndios ditos “sérios” sobre História da Música, onde o anedótico se veste com o charme do pitoresco. Procurei ser didático citando nomes, sempre com a preocupação de informar sobre datas, locais, obras, expressões técnicas e mesmo certo tipo de gíria profissional.

Revisitei livros e anotações em busca de informações já incorporadas ao folclore do músico, despertando minha memória oculta. Estórias que havia lido, vivido ou ouvido começaram a pipocar em minha cabeça. Usava um minigravador durante as longas horas que passava diariamente no trânsito congestionado de São Paulo.

Artigos da imprensa, bate-papos, páginas de livros e anedotas, tudo se transformou em fonte. Por isso, longe deste texto o chamado rigor científico, são meras reflexões! (O apresentador de rádio e TV Flávio Cavalcanti deliciava-se em encontrar erros nas letras das músicas. Quebrou o disco do Adoniran Barbosa (1910-1982) porque foi checar aquele famoso “se eu perder esse trem que sai agora às onze horas, só amanhã de manhã” e, ao vivo, ligou e descobriu que havia mais duas viagens, a próxima às onze e meia. O desastrado rigor científico de Cavalcanti quebrou-lhe o disco ao vivo e se esqueceu de que o trem das onze poderia ser uma mentirinha do filho mimado para despedir-se da amada e voltar para casa).

Mesmo em vista da informalidade do texto, convém lembrar fontes como as cartas pessoais de grandes compositores, reproduzidas em livros como “Appassionata”, de Kurt Pahlen. No Conselho Municipal de Cultura de São Paulo conheci o operófilo Edson Lima, que me emprestou um livro raro, “Risos e Lágrimas no Mundo da Música”, de Gumercindo Saraiva, algo como as “Curiosidades” publicadas nos anos 50 por Letícia Pagano. Mais lágrimas do que risos, com jeito de almanaque, Saraiva trouxe algumas estórias que pude confirmar, inspirando o bom humor do texto.

O amigo Aylton Escobar tinha um curso de pós de História da Regência, essencial para o texto sobre maestros. Músico instigante, de cultura e inteligência fora do comum, Escobar foi peça decisiva para a compreensão do regente e tudo o que é preciso para ser um deles. Fora, é claro, saber reger.

Gostaria de ter usado a linguagem irreverente do Mário de Andrade. Infelizmente, faltou-me o talento do mestre, mas espero, inspirado nele, ter criado uma leitura agradável. Mário não freava aqueles pensamentos que às vezes nos assaltam quando lemos sobre a história chamada “séria”. Deixei escapar expressões como “coisa de maluco”. (O filósofo e musicólogo alemão Theodor Adorno escreve “ridículo” e “o som eunucóide da jazz band” com naturalidade).

Minhas desculpas aos eruditos encasacados, cujos cabelos poderão ficar arrepiados diante da simples menção a nomes como Sid Vicious, do Sex Pistols, ou Kurt Kobain, do Nirvana, entre outros. Vicious, como músico, foi muito fraco, mas é personagem muito importante para se compreender o comportamento de um artista no chamado fundo do poço.

As referências desde já serão abandonadas definitivamente, A matéria-prima sobre a qual se fundamenta este texto, reside basicamente em minha memória, na vida de músico e professor. Informações foram colhidas nas mais diversas fontes. Fatos do passado podem mesclar-se a outros recentes, e tome situações, causos e anedotas ouvidos em bate-papos ao longo de muitos anos nessa divertida estrada – como os personagens circenses do filme “La Strada”, de Fellini – de músico. O mundo está em crise e o país à deriva, mas a música tem o condão de fazer mais suaves nossos pesadelos – assim como fez Wallace Hartley, do Titanic, que não parou a valsa enquanto o navio afundava.

Homenageio os colegas músicos, que se divertem mas amargam o dito “orquestra é como sítio, só tem duas alegrias: quando a gente entra e quando sai”. No fundo, a lida musical diverte, mas faz sofrer. Cantam em uníssono samba e fado: a gente vai levando, navegar é preciso. [Terminada a introdução, logo passarei ao texto propriamente dito].