A música a serviço do poder (final)

Ao emoldurar uma poesia, a música abre novos horizontes. Na música popular – vide alguns “pop stars”, como Joan Baez e Bob Dylan, apóstolos contra a guerra do Vietnã – a mensagem política nas letras flui e chega melhor aos ouvidos quanto mais simples for a estrutura melódica e harmônica. Já a música panfletária costuma ser pobre de harmonia e melodia, visando às massas. Exemplo é “Bandiera Rossa”, dos radicais italianos do passado: “Avanti, popolo, facciamo greve / viva Lenine, viva Kruschev /  Bandiera rossa, color di vino / (…) viva Stalino / A mezzanotte, cielo stellato / Il santo papa, sarà inforcato”.

Um caso emblemático foi o de Kurt Weill (1900-1950), compositor alemão que se associou ao teatrólogo Bertold Brecht – parceria que resultou nas célebres “Mahogonny” (1927), e a “Ópera dos Três Vinténs” (1928), paródia sobre a “Ópera dos Mendigos”, de John Gay (1728). (Chico Buarque aproveitou Weil-Brecht na sua “Ópera do Malandro”). Como Eisler, Weill abandonou a linha romântica e a expressão musical de sentimentos para veicular em suas obras ideias revolucionárias.

Geraldo Vandré, compositor de “Caminhando (Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores)”, conquistou, em 1968, o segundo lugar no Festival Internacional da Canção do Rio de Janeiro, ante a gritaria do público do Maracanãzinho, que achou a vencedora “Sabiá”, de Chico Buarque e Jobim, uma cançoneta alienada. Não haviam se dado conta de que se tratava de uma canção do exílio. “Caminhando” virou hino de todos os movimentos populares, mas a carreira de Vandré foi bruscamente interrompida durante uma turnê em Goiás (das trevas, viera o nefasto AI-5). O compositor descobriu que apenas “acreditando nas flores” não venceria o canhão.

Na iminência de ser preso, Vandré passou à clandes­tinidade. Saiu do Brasil, deu alguns giros e terminou em Paris, cidade que adotou até seu retorno, em 1973, negoci­ado com os militares (período Médici). Pisou emocionado o solo brasileiro e leu um texto, na TV Globo, onde dizia querer integrar-se à “nova realidade social brasileira”. E que dali em diante só queria fazer canções que falassem de amor e paz. Era a autocrítica pública para nossos Jdanovs às avessas daquele período. Por volta de 1989, volta e meia aparecia na Escola de Municipal de Música querendo mostrar alguma peça para piano que queria clássica (muito melhor era a “Disparada”!), e eu comecei a fugir pelos fundos.

O libreto é a única maneira mais consistente de se expressar uma mensagem política na ópera. Mesmo assim, na maioria das vezes é praticamente impossível entender o que os cantores estão dizendo, independentemente de ser em alemão, italiano ou francês: expressam-se com dicção difícil de compreender pela plateia. Rameau (séc. 17/18), durante um ensaio de sua ópera “Les Paladins”, pediu à orquestra um tempo muito mais rápido. Foi quando a soprano reclamou que naquele andamento o público não entenderia o texto. O compositor disse que não fazia a menor diferença, bastava entenderem a música. Há também problemas de registro vocal, como quando Nelson Gonçalves, o do vozeirão, gravava com Caetano, mais intimista. Caetano pediu ao Nelson que subisse um pouco o tom, pois achava difícil articular as palavras com notas tão graves. Nelson respon­deu, à queima-roupa: “Vai falando, como faz o João Gilberto”.

Maria Callas, em uma récita de “I Puritani”, em 1949, iniciou a ária “Son Vergin Vezzosa” – sou virgem gra­ciosa – com um sonoro “son vergin viziosa” – sou virgem viciosa. Mas apenas um punhado de aficionados com ouvidos aguçados perceberam. (Callas bem que poderia ter tido sua gafe listada como “mondegreen”, de “laid him on the green” – deitou-o na grama, trecho de letra de música que uma jornalista da Califórnia nos anos 50 havia entendido como Lady Mondegreen, escorregada que deu nome ao neologismo).

Villa-Lobos não gostava do bel-canto de mãos dadas no peito: ele queria ouvir claramente a soprano dizer: “a cantar o cariri…” Bernstein compartilhava da necessidade de se entender o que os solistas cantam, e isso se reflete em suas “Candide” e “West Side Story”, por exemplo. Chegou a afirmar que a melhor coisa que aconteceu para a música vocal no século 20 foram os Beatles.

Bom, estávamos na Alemanha nazista, onde fechávamos o assunto Kurt Weill, que, perseguido pela Gestapo, fugiu em 1933 levando Bertold Brecht. Comungava nas fontes revolucionárias e ainda por cima era judeu. Curiosidade é a tradição dos grandes violinistas judeus, certamente a maioria dos melhores de todos os tempos, que nos deu nomes como Heifetz, Menuhin, Stern, Zuchermann, Perlman e Milstein, entre muitos outros. Nos campos de concentração o violino era frequentemente tolerado pelos soldados alemães, para seu próprio deleite. Para os presos, além de servir como distração e gostoso passatempo, era também uma forma inteligente de transportar, sem chamar atenção, altas quantias – tudo o que a família tinha – para o caso de lograrem sair. (Itzhak Perlman teve um violino milionário roubado de seu camarim, após um recital. Sorte dele, alguém viu a peça em uma loja de penhores, e Perlman o comprou de volta por um preço ridículo – não mais do que US$ 50). O apego dos judeus a violinos é algo que tem história no holocausto nazista. Daí o correr de seu som nas veias de gerações.

A música na política foi um desastre, exceção à Revolução Francesa, com a “Marseillaise”: cruel mas bela.  Mas não foi panfletária: serviu à conclamação do povo ao fim do regime e até hoje como hino da pátria.